Simone de Beauvoir, um feminismo de mãos peludas.
Nivaldo T. Manzano
A filósofa Andrea Nye (1939 -), estudiosa das teorias feministas, mostra
em seu livro “Teoria feministas e as filosofias do Homem", os descaminhos
do binarismo (,sim x não, zero x um), no qual incorre boa parte dessas teorias.
Em geral, tais propostas falecem ante as próprias pretensões teóricas de
recuperar a dimensão feminina da existência, ao se construírem como simétricas
ao seu oposto, que as exclui. Essas teorias fazem-nos ver sem disso se darem
conta que, se não se encontram pelos nas mãos de quem as elabora, em
contrapartida lá está indicado, na forma de ausência, o lugar de sua presença.
Seriam igualmente modelos masculinos a serviço da teorização do feminino.
Assim, por exemplo, em Simone de Beauvoir o feminismo caracteriza-se (1)
pelo não reconhecimento de uma especificidade feminina e (2) pela não rejeição
dos modelos masculinos. Ao enfatizar a igualdade e a semelhança entre os seres
humanos, Beauvoir esquece-se da diferença, que os singulariza, adverte Nye.
Segundo Beauvoir, o que haveria de socialmente inaceitável na condição feminina
é apenas o fato de as mulheres terem sido vistas sempre como escravas e os
homens, sempre como senhores. Remova-se a mão masculina proprietária - a
penetração do macho ativo no ato sexual, “no sentido de seu próprio prazer” -,
e ela se dará para si mesma o prazer, sendo também ativa. Para que isso ocorra,
basta que ambos se encarem como “semelhantes”. Uma vez que a mulher seja vista
“como” um homem - ou seja, como um sujeito - então será possível a
reciprocidade no ato sexual. São, portanto, dois sujeitos iguais que se
defrontam, desfrutando um do outro.
Modelo abstrato de oposição binária, no qual é possível reconhecer, não
o prazer na solidariedade, mas a fricção no isolamento mútuo, enganosamente
prazeroso e supostamente sem risco, já que nenhum dos dois reconhece no espaço
de sua singularidade a presença necessariamente constitutiva de outrem. Por
isso, Nye propõe uma nova direção para o pensamento feminista que, ao deixar de
ser uma imagem espelhada do pensamento masculinista do igual, busque
caracterizar a sua diferença. Afinal, o estado de escravidão, a que alude
Beauvoir, não caracteriza o gênero: tanto o sexo feminino quanto o masculino
estão sujeitos, ainda que historicamente em graus diferentes, a serem tratados
como objeto.
Observe que o movimento pelo reconhecimento universal da igualdade de
direitos estimula com igual intensidade o movimento pelo reconhecimento das
diferenças. É como se a igualdade, uma vez reconhecida, lançasse luz sobre o
risco do igualitarismo que, ao ameaçar asfixiar a diversidade, exacerba a
afirmação das diferenças. É o que parece ter ocorrido ao movimento feminista,
em sua recente trajetória.
As marinheiras norte-americanas, que a esse papel chegaram na coroação
da luta feminista pela igualdade de direitos, uma vez embarcadas no projeto de
novos submarinos, recusavam-se, no tratamento recebido, a ser iguais aos
marinheiros, depois de estes terem apoiado democraticamente, em nome da
igualdade, a remoção da discriminação contra a mulher no trabalho. Postados
ambos os grupos diante da abstração objetiva de sua igualdade, agora
reconhecida, avultou a diferença entre um e outro, que é preciso respeitar.
Como o almirantado, em nome das exigências da guerra, não quis admiti-lo,
instalou-se o problema.
A história é a seguinte: o projeto dos novos submarinos não reserva
espaço suficiente para a construção de dependências sanitárias distintas para
homem e para mulher, em razão de na sua distribuição ter-se dado prioridade ao
armamento. Com tantos mísseis democráticos e igualitários a bordo, restou pouco
espaço para acomodar as diferenças. Elas batiam o pé diante do almirantado,
exigindo em nome da privacidade banheiros exclusivamente femininos, enquanto os
marinheiros, em defesa de si mesmos, tratavam de apoiá-las sob o argumento de
que homem nenhum é de ferro. Em resposta, o almirantado dizia que não se pode
confundir as lidas da guerra com as coisas do amor. Se vence o amor, corre-se o
risco de perder a guerra.
O episódio é emblemático da fragilidade de abstrações tais como a
igualdade de direitos individuais, quando confrontadas com a realidade, que é
ao mesmo tempo igual e diferente, por ser unitária. As abstrações da democracia
igualitária ou da luta feminista não dão conta de toda a realidade, que
acreditam abarcar. Observe-se, adverte Andrea Nye, que as feministas tiveram de
se render ao feminino - à diferença -, para poderem conferir legitimidade ao
seu movimento.
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