segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Simone de Beauvoir, um feminismo de mãos peludas.

Simone de Beauvoir, um feminismo de mãos peludas.

Nivaldo T. Manzano

A filósofa Andrea Nye (1939 -), estudiosa das teorias feministas, mostra em seu livro “Teoria feministas e as filosofias do Homem", os descaminhos do binarismo (,sim x não, zero x um), no qual incorre boa parte dessas teorias. Em geral, tais propostas falecem ante as próprias pretensões teóricas de recuperar a dimensão feminina da existência, ao se construírem como simétricas ao seu oposto, que as exclui. Essas teorias fazem-nos ver sem disso se darem conta que, se não se encontram pelos nas mãos de quem as elabora, em contrapartida lá está indicado, na forma de ausência, o lugar de sua presença. Seriam igualmente modelos masculinos a serviço da teorização do feminino.

Assim, por exemplo, em Simone de Beauvoir o feminismo caracteriza-se (1) pelo não reconhecimento de uma especificidade feminina e (2) pela não rejeição dos modelos masculinos. Ao enfatizar a igualdade e a semelhança entre os seres humanos, Beauvoir esquece-se da diferença, que os singulariza, adverte Nye. Segundo Beauvoir, o que haveria de socialmente inaceitável na condição feminina é apenas o fato de as mulheres terem sido vistas sempre como escravas e os homens, sempre como senhores. Remova-se a mão masculina proprietária - a penetração do macho ativo no ato sexual, “no sentido de seu próprio prazer” -, e ela se dará para si mesma o prazer, sendo também ativa. Para que isso ocorra, basta que ambos se encarem como “semelhantes”. Uma vez que a mulher seja vista “como” um homem - ou seja, como um sujeito - então será possível a reciprocidade no ato sexual. São, portanto, dois sujeitos iguais que se defrontam, desfrutando um do outro.

Modelo abstrato de oposição binária, no qual é possível reconhecer, não o prazer na solidariedade, mas a fricção no isolamento mútuo, enganosamente prazeroso e supostamente sem risco, já que nenhum dos dois reconhece no espaço de sua singularidade a presença necessariamente constitutiva de outrem. Por isso, Nye propõe uma nova direção para o pensamento feminista que, ao deixar de ser uma imagem espelhada do pensamento masculinista do igual, busque caracterizar a sua diferença. Afinal, o estado de escravidão, a que alude Beauvoir, não caracteriza o gênero: tanto o sexo feminino quanto o masculino estão sujeitos, ainda que historicamente em graus diferentes, a serem tratados como objeto.

Observe que o movimento pelo reconhecimento universal da igualdade de direitos estimula com igual intensidade o movimento pelo reconhecimento das diferenças. É como se a igualdade, uma vez reconhecida, lançasse luz sobre o risco do igualitarismo que, ao ameaçar asfixiar a diversidade, exacerba a afirmação das diferenças. É o que parece ter ocorrido ao movimento feminista, em sua recente trajetória.

As marinheiras norte-americanas, que a esse papel chegaram na coroação da luta feminista pela igualdade de direitos, uma vez embarcadas no projeto de novos submarinos, recusavam-se, no tratamento recebido, a ser iguais aos marinheiros, depois de estes terem apoiado democraticamente, em nome da igualdade, a remoção da discriminação contra a mulher no trabalho. Postados ambos os grupos diante da abstração objetiva de sua igualdade, agora reconhecida, avultou a diferença entre um e outro, que é preciso respeitar. Como o almirantado, em nome das exigências da guerra, não quis admiti-lo, instalou-se o problema.

A história é a seguinte: o projeto dos novos submarinos não reserva espaço suficiente para a construção de dependências sanitárias distintas para homem e para mulher, em razão de na sua distribuição ter-se dado prioridade ao armamento. Com tantos mísseis democráticos e igualitários a bordo, restou pouco espaço para acomodar as diferenças. Elas batiam o pé diante do almirantado, exigindo em nome da privacidade banheiros exclusivamente femininos, enquanto os marinheiros, em defesa de si mesmos, tratavam de apoiá-las sob o argumento de que homem nenhum é de ferro. Em resposta, o almirantado dizia que não se pode confundir as lidas da guerra com as coisas do amor. Se vence o amor, corre-se o risco de perder a guerra.

O episódio é emblemático da fragilidade de abstrações tais como a igualdade de direitos individuais, quando confrontadas com a realidade, que é ao mesmo tempo igual e diferente, por ser unitária. As abstrações da democracia igualitária ou da luta feminista não dão conta de toda a realidade, que acreditam abarcar. Observe-se, adverte Andrea Nye, que as feministas tiveram de se render ao feminino - à diferença -, para poderem conferir legitimidade ao seu movimento.

 

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