segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Rumo á desencarnação progressiva da humanidade (1)

 Rumo à desencarnação progressiva da humanidade? (I)

A linguagem de Homero na Ilíada e na Odisseia reluta em autorizar a realidade a desprender-se, na operação abstrativa, de suas circunstâncias adverbiais, uma vez que sem elas se perderia o caráter único e irrepetível do ato, em seu contexto. O exercício da abstração, que prescinde do particular na afirmação do universal, ainda não chegara à maturidade. Daí que Ilíada e Odisseia sejam ricas em expressões imersas no concreto, no sensível e no singular. Por exemplo, no repertório de verbos utilizados por Homero para denotar a visão, mostra Bruno Snell*, estão presentes de modo indissociáveis, não somente a função dos olhos, mas também o fulgor do olhar como percebido por outrem. Ou seja, à função dos olhos está sempre associada a uma qualidade expressiva do olhar, como se o ato de ver não pudesse ser praticado de maneira não adverbial, não circunstancial, não singular, não contextual. Ora o verbo expressa um olhar nostálgico, ora um olhar penetrante, ora um olhar temeroso, ora um olhar cauto, perífrases que revelam não apenas aquele que enxerga, mas também como enxerga em sua visada contextual.
Na obra do rapsodo, há tantos modos de olhar quantos são os contextos em que se enxerga – diferentemente. Não se encontra em Homero um único verbo que se refira ao sentido da visão como atividade peculiar de um órgão que proporciona ao ser humano determinadas impressões sensoriais, distintas do órgão da audição, por exemplo. Não ocorre em seus poemas um verbo “científico” que designe a função de ver enquanto tal. Nada em Homero é enquanto tal. A epopeia homérica, observa Snell, parece testemunhar a evolução semântica e ética no emprego das palavras que, esboçadas inicialmente em gritos, sussurros, cantos, gemidos e brados – presentes na experiência dos sentimentos e emoções – caminha no tempo antropológico em direção à sua materialização abstrata em ideias.
Transcorrido meio milênio, Platão temeroso do caráter aleatório das circunstâncias, que não lhe permitem divisar uma solução definitiva para a crise política de Atenas, fixa-se em suas ideias eternas, para desqualificá-las e removê-las (episódio da caverna). E, assim, com o advento de Sócrates e do platonismo, somos instados a descrer do modo recorrentemente novo de enxergar (A poesia é proibida na República), para nos atermos às formas, à fixidez das figuras geométricas e dos números. No frontispício da Academia de Platão, estava escrito: “Que nenhum desconhecedor de geometria entre aqui”.
Na história da reflexão, esse é o marco inaugural do hábito de se construírem objetos científicos desprendidos de contexto (modelo de estrutura & função, ainda hoje prevalecente na Academia). Sócrates e Platão proscrevem normativamente os modos adverbiais da existência – a sua singularidade - “O homem e a sua circunstância”, de Ortega y Gasset -, para exaltar na ontologia a consagração do nome, da substância, do substantivo, que ganham aplicação tanto mais ampla quanto mais descontextualizados. Aqui Friedrich Nietzsche finca o seu marco divisório entre a filosofia, a dos pré-socráticos, e o fim da filosofia, a partir de Sócrates e Platão, em sua obra inaugural "O nascimento da tragédia no espírito da música"** (1872).
Uma vez depurado a visão das circunstâncias do olhar, abre-se o caminho para a proclamação de sua universalidade, homogeneidade, uniformidade e objetividade – matrizes da intolerância. Dessa transfiguração emergirá o objeto desencarnado da visada humana, revestido da mesma pureza e inocência com que Deus o contemplou, antes de colocar Adão no Paraíso.
Desse modo, na cultura ocidental moldada pelo Iluminismo chapa-branca, que removeu para a sombra o “Iluminismo radical**, fomos adestrados a ignorar que a percepção, à maneira de um cordão umbilical que nos liga à existência, continua a alimentar-se da matéria viva, a uma profundidade que a racionalidade, isoladamente, não alcança, por desprezá-la. Porém, lembra o filósofo George Santayana***, "a incapacidade da razão de abranger sozinha a realidade inteira, sobre a qual se aplica, “expressa-se de modo recorrente na pulsação latente da fase animal da experiência, que irrompe com ênfase desarticulada no plano da percepção, como a solicitar atenção para seus máximos de intensidade, na forma de prazer, dor, susto, expectativa, esforço. Se ao ser humano não fosse dada a possibilidade de reter essa premência de intensidade variável na forma de atenção, não seria possível manifestar-se em palavras, por exemplo, como ocasião fonética e mental para a demarcação do antes e depois na sua história”. É verdade que o conseguimos", prossegue Santayana, "mediante as ideias, as formas, uma nova melodia recorrente, ou a marcação do ritmo, por exemplo. É somente assim que se torna possível separar-se e comparar a experiência de um e de outro momento, quando da tomada de consciência plena de si mesmo, que se faz presente na forma de outro, ou seja, do conteúdo da percepção. “Dessa forma, a corrente subterrânea continua a arrastar, mediante a geração contínua de suas bolhas de instabilidade, a estabilidade superficial aparente”
Essa é garantia de que a objetividade racional, considerada isoladamente, não nos fará sucumbir no vórtice do delírio de Simão Bacamarte, protagonista tragicômico da novela “O alienista”, de Machado de Assis, uma paródia do pensamento positivista, de Augusto Comte, predominante no Brasil em sua época. (1 de 2 segue).
** Nietzsche, F., O nascimento da tragédia no espírito da música, São Paulo, Escala, 1975.
***Santayana, G., Escepticismo y fé animal, Buenos Aires, Losada, 1952.
*Snell, Bruno, A descoberta do espírito, Lisboa, Edições 70, 1992.


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