segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Rumo à desencarnação progressiva da humanidade? (II)

 

Rumo à desencarnação progressiva da humanidade? (II)

Nivaldo T. Manzano

Resumo da parte (I) : A linguagem de Homero na Ilíada e na Odisseia reluta em autorizar a realidade a desprender-se, na operação abstrativa, de suas circunstâncias adverbiais, uma vez que sem elas se perderia o caráter único e irrepetível do ato, em seu contexto. O exercício da abstração, que prescinde do particular na afirmação da universalidade, ainda não chegara à maturidade. Daí que Ilíada e Odisseia sejam ricas em expressões imersas no concreto, no sensível e no singular.

Vinte séculos depois de Homero, Espinosa (1632-1677) retornaria aos advérbios circunstancias, atribuindo-lhes uma posição central na sua filosofia. Em lugar do nome, do substantivo, do “isso”, da “coisa”, isolados de seu contexto, ele irá propor que se adote o advérbio de modo, que se reconcilie na filosofia e na existência, indissociáveis para ele, o modo de olhar com o sujeito que olha. Assim como ocorre no amor, restabelecer-se-ia a singularidade, e com ela a intensidade na aproximação infinita da realidade a conhecer, perspectiva que desconhece limites, valoriza o instante e a fruição no êxtase, em meio à incerteza e ao risco. Dir-se-ia que para Espinosa a operação racional, que ele não deixa de valorizar, é de natureza digital, enquanto a realidade sobre a qual opera, é ao mesmo tempo analógica (Tanto pior para a lógica).

Daí que o filosofo cuidará de recomendar cautela diante do conhecimento enlatado e definitivo, que se obteria por meio de prestidigitações reducionistas. Não que se devesse atirá-lo no lixo. A serventia do estoque, das definições, do hardware, do fotograma é preciosa como testemunha da diferença entre abstração de que se constituem e a realidade que creem apreender, o que incita à busca de mais e mais diferenças. Sob esse aspecto, o valor instrumental da racionalidade contribui para que nos demos conta de que ela, isoladamente, não conduz à realidade imediata e singular = contextual.

À chegada da Modernidade, do otimismo iluminista, que anunciaria o progresso automático, hoje movido pelos algoritmos, Espinosa ousou denunciar-lhe a tautologia, segundo a qual o que veio antes deve ser utilizado para explicar o que veio depois, e o que veio depois, para explicar o que veio antes. Tudo tornava-se logicamente necessário e racionalmente transparente, como se a existência, reduzida a um silogismo, devesse ser destituída da estranheza e do encantamento que proporciona um advérbio de modo. Foi a gota d’água que bastou para que, já excomungado pela sinagoga, fosse banido pela Igreja Católica, pelo Protestantismo e pela comunidade dos cientistas, convertendo-se no intelectual mais censurado e mais perseguido de todos os tempos na história cultura do Ocidente, como atesta a pesquisa exaustiva de Jonathan Israel*

Então, já se haviam aberto as portas para a recuperação platônica da objetividade não circunstancial. O seu retorno triunfal dá-se com Francis Bacon (1561-1626) com a separação irreconciliável entre sujeito e objeto, agora convertidos em entidades reciprocamente estranhas. Em lugar do olhar adverbial de Homero, tem-se agora, com a objetividade, um olho mecânico que reflete o objeto visto, estranhamente um perfeito acoplamento entre chave e fechadura. Estranhamente, porque esse mesmo Prometeu, agora encarregado de dominar a natureza, assume-a como rebelde às suas investidas, ele também igualmente estranho a ela.

Em que pese a estranheza mútua, ou graças a ela, com Bacon o saber científico assoma à condição de um herói demiúrgico, cujos passos serão cadenciados pela grandiosidade suarenta do Gênesis. Competirá ao novo Prometeu assumir vicariamente o lugar do Criador, a separar novamente a luz das trevas, não deixando no rastro de seus passos nesga alguma de lusco-fusco que denuncie o caráter humano da empreitada. Tão somente um olho mecânico que reflete o objetivo visto. E não haveria por que questionar a pertinência de tal propósito: Não seria a razão humana uma centelha da razão divina? A realidade da Criação seria regida pelas leis da Física: Newton prestou-se apenas a ser o escriba encarregado por Deus de dar-lhes forma humana. Eis aí o perfil ideológico que inspirou Machado de Assis a criar em sua novela "O alienista" o médico Simão Bacamarte, protagonista tragicômico, uma metáfora do pensamento positivista, que na sua época predominava no Rio, de Janeiro, então capital intelectual do Pais.

*ISRAEL, J., Iluminismo radical, São Paulo, Madras, 2009.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário