Rumo à desencarnação progressiva da humanidade? (II)
Nivaldo T. Manzano
Resumo da parte (I) : A linguagem de Homero na Ilíada e na Odisseia
reluta em autorizar a realidade a desprender-se, na operação abstrativa, de
suas circunstâncias adverbiais, uma vez que sem elas se perderia o caráter
único e irrepetível do ato, em seu contexto. O exercício da abstração, que
prescinde do particular na afirmação da universalidade, ainda não chegara à
maturidade. Daí que Ilíada e Odisseia sejam ricas em expressões imersas no
concreto, no sensível e no singular.
Vinte séculos depois de Homero, Espinosa (1632-1677) retornaria aos
advérbios circunstancias, atribuindo-lhes uma posição central na sua filosofia.
Em lugar do nome, do substantivo, do “isso”, da “coisa”, isolados de seu
contexto, ele irá propor que se adote o advérbio de modo, que se reconcilie na
filosofia e na existência, indissociáveis para ele, o modo de olhar com o
sujeito que olha. Assim como ocorre no amor, restabelecer-se-ia a
singularidade, e com ela a intensidade na aproximação infinita da realidade a
conhecer, perspectiva que desconhece limites, valoriza o instante e a fruição
no êxtase, em meio à incerteza e ao risco. Dir-se-ia que para Espinosa a
operação racional, que ele não deixa de valorizar, é de natureza digital,
enquanto a realidade sobre a qual opera, é ao mesmo tempo analógica (Tanto pior
para a lógica).
Daí que o filosofo cuidará de recomendar cautela diante do conhecimento
enlatado e definitivo, que se obteria por meio de prestidigitações
reducionistas. Não que se devesse atirá-lo no lixo. A serventia do estoque, das
definições, do hardware, do fotograma é preciosa como testemunha da diferença
entre abstração de que se constituem e a realidade que creem apreender, o que
incita à busca de mais e mais diferenças. Sob esse aspecto, o valor
instrumental da racionalidade contribui para que nos demos conta de que ela,
isoladamente, não conduz à realidade imediata e singular = contextual.
À chegada da Modernidade, do otimismo iluminista, que anunciaria o
progresso automático, hoje movido pelos algoritmos, Espinosa ousou
denunciar-lhe a tautologia, segundo a qual o que veio antes deve ser utilizado
para explicar o que veio depois, e o que veio depois, para explicar o que veio
antes. Tudo tornava-se logicamente necessário e racionalmente transparente,
como se a existência, reduzida a um silogismo, devesse ser destituída da
estranheza e do encantamento que proporciona um advérbio de modo. Foi a gota
d’água que bastou para que, já excomungado pela sinagoga, fosse banido pela
Igreja Católica, pelo Protestantismo e pela comunidade dos cientistas,
convertendo-se no intelectual mais censurado e mais perseguido de todos os
tempos na história cultura do Ocidente, como atesta a pesquisa exaustiva de
Jonathan Israel*
Então, já se haviam aberto as portas para a recuperação platônica da
objetividade não circunstancial. O seu retorno triunfal dá-se com Francis Bacon
(1561-1626) com a separação irreconciliável entre sujeito e objeto, agora
convertidos em entidades reciprocamente estranhas. Em lugar do olhar adverbial
de Homero, tem-se agora, com a objetividade, um olho mecânico que reflete o
objeto visto, estranhamente um perfeito acoplamento entre chave e fechadura.
Estranhamente, porque esse mesmo Prometeu, agora encarregado de dominar a
natureza, assume-a como rebelde às suas investidas, ele também igualmente
estranho a ela.
Em que pese a estranheza mútua, ou graças a ela, com Bacon o saber
científico assoma à condição de um herói demiúrgico, cujos passos serão
cadenciados pela grandiosidade suarenta do Gênesis. Competirá ao novo Prometeu
assumir vicariamente o lugar do Criador, a separar novamente a luz das trevas,
não deixando no rastro de seus passos nesga alguma de lusco-fusco que denuncie
o caráter humano da empreitada. Tão somente um olho mecânico que reflete o
objetivo visto. E não haveria por que questionar a pertinência de tal
propósito: Não seria a razão humana uma centelha da razão divina? A realidade
da Criação seria regida pelas leis da Física: Newton prestou-se apenas a ser o
escriba encarregado por Deus de dar-lhes forma humana. Eis aí o perfil
ideológico que inspirou Machado de Assis a criar em sua novela "O
alienista" o médico Simão Bacamarte, protagonista tragicômico, uma
metáfora do pensamento positivista, que na sua época predominava no Rio, de
Janeiro, então capital intelectual do Pais.
*ISRAEL, J., Iluminismo radical, São Paulo, Madras, 2009.
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