A lição do mateiro a três engenheiros
florestais
Em 1987, estando em visita ao amigo
Aulo de Carvalho, cacauicultor de Ilheus (BA), formado em Direito, conhecedor
do mundo e com três engenheiros agrônomos na família, dirigimo-nos um dia ao
Centro de Pesquisa da Lavoura Cacaueira (Ceplac), em Itabuna, levando num saco
pequenos tocos de madeira, retirados de sua fazenda. Ele havia recebido
autorização do então IBDF (equivalente ao Ibama) para remover algumas árvores
da Floresta Atlântica, em iminente estado de decomposição, e queria
identificá-las. Fomos recebidos por três engenheiros florestais, numa
manifestação de deferência para com “doutor Aulo”, que havia sido um dos
fundadores da instituição. Depois de examiná-los atentamente, os três,
confessando-se incapazes, convocaram um velho mateiro, ali empregado nos
serviços gerais, e lhe perguntaram: Que pau é esse? O mateiro, depois de
observar a cor e os veios da madeira, apalpar, cheirar e lamber, reconheceu
cada espécie pelo seu nome popular. Lembrei-me, então, de Ivan Illich* e de sua
temática - “desescolarizar a sociedade”, como condição para ela poder
reconciliar-se com a Cultura e com a existência - razão, intuição, ética,
estética e sentimento.
Em 1986, em visita de trabalho ao
Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados, um dos mais importantes do mundo
em agricultura tropical - no qual pesquisam dezenas de especialistas em
recursos naturais da região -, notei na cozinha experimental a presença, entre
os funcionários, de mateiras que nunca haviam passado pela escola. Perguntei
qual era o seu trabalho e me informaram que orientavam os pesquisadores,
dizendo-lhes, por exemplo, que utilidades tinha na cozinha a cagaita, uma das
frutas dos cerrados, por eles desconhecida, assim como quase toda a
fruticultura de uso culinário do Bioma.
Diz-se que o ser humano, como ser
inteligente, acumula experiência na forma de conhecimento. Mas a cada novo
estado de mudança, a cada nova transição do suposto estado de ignorância para o
novo estado de conhecimento, tem-se a impressão de que os sentidos — o tato, o
paladar, o olfato, a visão e a audição - regridem à condição de “analfabetos”,
incapazes de reler o mundo que passou e despreparados para ler o mundo que
chega. (Isso ocorre também no amor).
Esses fatos me levam à reflexão sobre
a exclusão da diversidade de perspectivas e da criatividade em que se exacerbam
na atualidade as tensões falsamente dicotômicas entre conhecimento científico x
conhecimento tradicional, ou entre ciências sociais x ciências exatas e
naturais. Luta pela sobrevivência, obsessão por controle, racionalidade
econômica, competição social, autossuficiência, sensação de impotência e ideias
de Paraíso são representações dominantes do imaginário social que conformam as
posturas do ser humano atual perante o meio natural. Palavras de ordem, como
lutar e vencer, sobrepõem-se à sabedoria dos antigos, que enxergavam no ideal
da harmonia com o ambiente a garantia de um convívio menos desequilibrado. Um
ideal que depositava a sua confiança, não numa visão pueril, mas na intuição de
que o ser humano, reconhecidamente um ser de cultura, é também natural — e,
nessa medida, tem o seu destino vinculado ao destino da natureza, que não
separa nada de nada. Já nos anos 800 o imperador Carlos Magno fez divulgar aos
súditos normas de respeito ao meio ambiente, como garantia de segurança
alimentar o seu "Capitulare de villis", o primeiro manual ambiental
após a queda do Império Romano.
O modo prevalecente do pensar
contemporâneo atrofiou a faculdade humana de contextualizar a existência como
um jogo de interações entre a sociedade e a natureza, tendo-se confiado à
ciência e à tecnologia a tarefa de dominar o mundo à sua volta como a um
inimigo. Nessa empreitada, a visão de mundo rompeu a unidade entre sociedade e
natureza e fragmentou-se em pedaços de um todo cuja referência se insiste em
desconhecer, ou em disciplinas que não conversam entre si, a pretexto de
assegurarem a supremacia de uma objetividade impessoal. Uma tal visão dualista,
que separa o sujeito do objeto e que se consagrou como marco da idade moderna,
impregnou não somente os cientistas, mas também a sociedade em geral, tanto
mais quanto a exaltação dos valores individualistas enfraquece os valores
associados à solidariedade.
Trata-se de uma visão animada por um
falso otimismo, que uniformiza a pretexto de universalizar e que submete a
pretexto de não se deixar derrotar, na ilusão de que a existência deva ser
concebida como uma corrida de obstáculos entre perdedores. É nesse pessimismo
arrogante que se banham a epistemologia dominante nas ciências e a ética que
lhe corresponde - a necessidade compulsiva de fazer valer um único ponto de
vista, graças ao qual se acredita em poder assediar a realidade, ou o objeto da
ciência, para exauri-lo e dominá-lo, mediante “descobertas” de pretensões
exaustivas.
*Sociedade sem escolas, Petrópolis,
Vozes, 1973.
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