segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A lição do mateiro a três engenheiros florestais

A lição do mateiro a três engenheiros florestais

 Nivaldo Tetilla Manzano (01/10/20)

 

Em 1987, estando em visita ao amigo Aulo de Carvalho, cacauicultor de Ilheus (BA), formado em Direito, conhecedor do mundo e com três engenheiros agrônomos na família, dirigimo-nos um dia ao Centro de Pesquisa da Lavoura Cacaueira (Ceplac), em Itabuna, levando num saco pequenos tocos de madeira, retirados de sua fazenda. Ele havia recebido autorização do então IBDF (equivalente ao Ibama) para remover algumas árvores da Floresta Atlântica, em iminente estado de decomposição, e queria identificá-las. Fomos recebidos por três engenheiros florestais, numa manifestação de deferência para com “doutor Aulo”, que havia sido um dos fundadores da instituição. Depois de examiná-los atentamente, os três, confessando-se incapazes, convocaram um velho mateiro, ali empregado nos serviços gerais, e lhe perguntaram: Que pau é esse? O mateiro, depois de observar a cor e os veios da madeira, apalpar, cheirar e lamber, reconheceu cada espécie pelo seu nome popular. Lembrei-me, então, de Ivan Illich* e de sua temática - “desescolarizar a sociedade”, como condição para ela poder reconciliar-se com a Cultura e com a existência - razão, intuição, ética, estética e sentimento.

Em 1986, em visita de trabalho ao Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados, um dos mais importantes do mundo em agricultura tropical - no qual pesquisam dezenas de especialistas em recursos naturais da região -, notei na cozinha experimental a presença, entre os funcionários, de mateiras que nunca haviam passado pela escola. Perguntei qual era o seu trabalho e me informaram que orientavam os pesquisadores, dizendo-lhes, por exemplo, que utilidades tinha na cozinha a cagaita, uma das frutas dos cerrados, por eles desconhecida, assim como quase toda a fruticultura de uso culinário do Bioma.

Diz-se que o ser humano, como ser inteligente, acumula experiência na forma de conhecimento. Mas a cada novo estado de mudança, a cada nova transição do suposto estado de ignorância para o novo estado de conhecimento, tem-se a impressão de que os sentidos — o tato, o paladar, o olfato, a visão e a audição - regridem à condição de “analfabetos”, incapazes de reler o mundo que passou e despreparados para ler o mundo que chega. (Isso ocorre também no amor).

Esses fatos me levam à reflexão sobre a exclusão da diversidade de perspectivas e da criatividade em que se exacerbam na atualidade as tensões falsamente dicotômicas entre conhecimento científico x conhecimento tradicional, ou entre ciências sociais x ciências exatas e naturais. Luta pela sobrevivência, obsessão por controle, racionalidade econômica, competição social, autossuficiência, sensação de impotência e ideias de Paraíso são representações dominantes do imaginário social que conformam as posturas do ser humano atual perante o meio natural. Palavras de ordem, como lutar e vencer, sobrepõem-se à sabedoria dos antigos, que enxergavam no ideal da harmonia com o ambiente a garantia de um convívio menos desequilibrado. Um ideal que depositava a sua confiança, não numa visão pueril, mas na intuição de que o ser humano, reconhecidamente um ser de cultura, é também natural — e, nessa medida, tem o seu destino vinculado ao destino da natureza, que não separa nada de nada. Já nos anos 800 o imperador Carlos Magno fez divulgar aos súditos normas de respeito ao meio ambiente, como garantia de segurança alimentar o seu "Capitulare de villis", o primeiro manual ambiental após a queda do Império Romano.

O modo prevalecente do pensar contemporâneo atrofiou a faculdade humana de contextualizar a existência como um jogo de interações entre a sociedade e a natureza, tendo-se confiado à ciência e à tecnologia a tarefa de dominar o mundo à sua volta como a um inimigo. Nessa empreitada, a visão de mundo rompeu a unidade entre sociedade e natureza e fragmentou-se em pedaços de um todo cuja referência se insiste em desconhecer, ou em disciplinas que não conversam entre si, a pretexto de assegurarem a supremacia de uma objetividade impessoal. Uma tal visão dualista, que separa o sujeito do objeto e que se consagrou como marco da idade moderna, impregnou não somente os cientistas, mas também a sociedade em geral, tanto mais quanto a exaltação dos valores individualistas enfraquece os valores associados à solidariedade.

Trata-se de uma visão animada por um falso otimismo, que uniformiza a pretexto de universalizar e que submete a pretexto de não se deixar derrotar, na ilusão de que a existência deva ser concebida como uma corrida de obstáculos entre perdedores. É nesse pessimismo arrogante que se banham a epistemologia dominante nas ciências e a ética que lhe corresponde - a necessidade compulsiva de fazer valer um único ponto de vista, graças ao qual se acredita em poder assediar a realidade, ou o objeto da ciência, para exauri-lo e dominá-lo, mediante “descobertas” de pretensões exaustivas.

*Sociedade sem escolas, Petrópolis, Vozes, 1973.

 


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