segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Entre Newton e Molière – a ciência preditiva no tribunal da comédia

 

Entre Newton e Molière – a ciência preditiva no tribunal da comédia 

Nivaldo T. Manzano

 

Depois de passar o dia a produzir a sua ciência do desencantamento, Isaac Newton, o criador da Física, acorria à noite ao teatro londrino, para desfrutar da nova temporada, na qual o comediante francês Molière se apresentava. Era o ano de 1669.

A comédia, que Newton apreciava, removia as coisas do lugar onde ele as colocava, desarranjando o mundo ordenado pela sua ciência. No palco, a peça de Molière, lançando mão de situações da vida quotidiana, jogava areia nas trajetórias certeiras da Mecânica clássica, pelo prazer irreverente de ver o pensamento linear sair dos trilhos, como ocorre na realidade. É como se de dia Newton fizesse comédia no laboratório, ao afirmar que se pode prever com certeza as consequências de se segurar um gato pelo rabo, e de noite Molière fizesse ciência contextual no palco, segurando o gato pelo rabo e provando que a certeza está em que não se sabe o que poderá ocorrer. Tanto deu certo a troca imaginária de papéis que ambos se consagraram como gênios. A sua genialidade consiste em terem sido ao mesmo tempo grandes cientistas e grandes comediantes, a despeito da ideia que faziam de si mesmos.

O comediante alimentava secretamente, quem sabe, a expectativa de que Newton fizesse retornar a seu mundo não o movimento abstrato, que já lá estava, mas a mudança real, o imprevisto, a novidade, sem o que não haveria como exercitar a criatividade. Em vão. Newton, refestelado numa das poltronas do camarote real, ria a mais não poder e, pensando que ria dos outros, aplaudia quem ria da certeza absoluta de sua ciência.

Assim como Newton promove uma revolução no pensamento, criando a ciência determinista, Molière promove uma revolução no teatro, dela fazendo mofa. Antes de Newton e dos novos teóricos do caos ou da complexidade, como já o sabiam as crianças, não era possível prever a trajetória do ioiô depois que se desprendesse das mãos do menino que estava a brincar com ele na rua. Antes de Molière, imperava no teatro o gênero trágico e não o gênero cômico, que retorna no século XVII.

Eram dois mundos contrastantes na sua contemporaneidade. Se, antes, na ciência não era possível prever a trajetória do ioiô, em compensação no teatro era possível prever a trajetória do herói trágico. No momento ­seguinte, o contraste retorna com sinal invertido: conhece-se agora antecipadamente a trajetória do ioiô, desde que seja retirado das mãos da criança; em contrapartida, já não é possível conhecer a trajetória que o novo herói irá percorrer no teatro. Por exigência da plateia, o herói trágico tivera de ceder seu lugar ao herói tragicômico; e este, uma vez no palco, tropeça num ­obstáculo qualquer, imprimindo na queda imprevista um rumo inesperado na história, para escândalo da ciência determinista, com suas trajetórias ­predefinidas.  

No gênero trágico, o comportamento do herói é previsível. O herói ­trágico está dissociado das contingências contextuais, Ele cumpre um destino que a plateia sabe antecipadamente qual é, da mesma forma como se conhecem antecipadamente as trajetórias da Mecânica clássica. Nada o faz desviar-se de seu caminho, na distância hierática que mantém do público. É como se ele fosse do outro mundo, não estando sujeito às premências contingentes do desejo e aos estímulos da realidade em mudança à sua volta. Cumpre uma sina inelutável. Ele está acima, abaixo, além ou aquém da realidade contextualizada dos espectadores. Assim como o objeto da ciência de Newton, o herói trágico apresenta-se fora do contexto de todas as épocas. A des­peito de si mesmo, ouvimos a sua palavra do fundo dos tempos e de lugar nenhum, como se fosse a voz da eternidade. É nisso que consiste a eficácia da catarse na tragédia: ela não nos atinge no presente. É no momento em que Molière encena no tetro londrino a sua comédia “Tartufo” que Newton assoma ao palco da ciência para anunciar uma nova física, que seria capaz de capturar o futuro com a mesma facilidade com que se conhece antecipadamente o destino do herói trágico. Os objetos científicos com que trabalha movem-se por trajetórias matematicamente reversíveis, como projéteis que pudessem retornar para dentro do cano da espingarda depois de terem sido disparados. Realizam uma tal proeza porque estão desprendidos de suas contingências contextuais, ausentes de um mundo que não é o nosso. Neste,­ no mundo da comédia de Molière, as trajetórias imprevisíveis que percorre o nosso destino parecem-se com as de um bêbado a caminho de casa, depois de uma noite de esbórnia.

Ao intuir que Newton e outros faziam migrar a visão trágica do palco para a ciência, Molière, que vinha tentando sem sucesso vencer no teatro como autor e ator de tragédias, muda de ideia. Adota o gênero tragicômico e cobre o novo herói com as vestes de que a nova ciência o despojava. Molière cuida de devolver ao mundo o encantamento que Newton lhe ­retira. O comediante leva para o palco, para divertir o povo, o ioiô que Newton havia retirado das mãos da criança para levá-lo para o quarto, na ilusão de poder tirar prazer do gozo solitário. A solidão é indissociável do exercício do poder hierárquico, implícito na vocação absolutista da nova ciência. Pois o seu ideal e a sua bandeira são o controle da realidade, como se não fosse a realidade em mudança, da qual somos parte, que nos controla e descontrola a nossa ilusão de controle.

Mas se observe que a diferença entre o cientista a fazer ciência e o comediante a fazer arte, é menor do que parece. Ainda que a contragosto, Newton é também artista, ao retirar da praça a abstração com que faz ciência, como é cientista Molière ao transferir da rua para o palco a representação teatral da vida quotidiana. A diferença é que a visão de Molière, motivada e enriquecida pelo mexerico do público, é includente; o humor com que entretém a plateia consiste em mostrar-lhe que a realidade pode ser percebida de mais de um ponto de vista. A comédia ou o riso é pluralista; afirma-se, contra o preconceito, no reconhecimento da diferença. Já a visão de Newton, empobrecida no isolamento de seu monólogo, é excludente: o humor, que desperta a contragosto na plateia, está em não admitir mais de um ponto de vista, porque a verdade de sua ciência, assim como a do poder que a viu nascer, é de vocação absolutista. A visão linear das ideologias é preconceituosa e intolerante; afirma-se, contra a diversidade, na exclusão.

Para Molière, é tão cômico um caçador nunca errar o alvo como nunca acertá-lo. O espaço público de sua realidade é o de todos os possíveis; a exatidão de sua ciência está no que lhe diz a imaginação, enquanto o espaço privativo de Newton é o do impossível. Newton, no empenho em sobrepor-se à realidade, cria o equilíbrio, que não se encontra em parte alguma na realidade. Molière remove a ilusão do equilíbrio, levando a plateia a rir e a chorar diante de um mundo real desequilibrado, tal qual é, pela nossa própria criatividade, para lembrar a todos de que tanto a verdade do teatro quanto a da ciência é humana.

Newton é artista no sentido de que também apela à sua própria imaginação, ao escolher a simetria com que constrói o seu mundo mecanicamente regulado. Para isso, utiliza a intuição de que se serve igualmente o artista, que também organiza a representação da realidade de acordo com a simetria de sua abstração. Ambos renovam a proeza do pintor da caverna, que arranca do espectador uma interjeição embevecida, ante o resultado criativo de seu engenho.

A diferença é que Newton, autoritário de temperamento e doutrina, ao contrário de Molière, invoca a autoridade de Deus, para dizer que a arte do Altíssimo é reprodução fiel de sua obra. Confere assim a seu trabalho contingente as propriedades da perfeição e da necessidade transcendentais, para que ninguém ouse desarranjá-lo, com o propósito de recriá-lo, de modo a reduzir a diferença entre o modelo e a realidade, para aperfeiçoá-lo. Com Newton e a partir de Newton a normativi­dade axiológica e supostamente soberana da quantidade irá impor-se com vezo de normalidade à existência, como se esta devesse medir-se pelo critério humano da métrica.

Trata-se, pois, da mais ambiciosa cruzada contra a criatividade. No frontispício da racionalidade como único instrumento e critério de verdade está escrito “ É proibido sonhar”, como se os próprios paradigmas da ciência não fossem fruto da imagi­nação. Se depois de Newton a ciência ainda assim evolui, é a contragosto de si mesma. Corroborando o ciúme e a vaidade do artista Newton, Einstein dirá mais tarde que Deus não joga dados. Einstein e Newton contra­riam a si mesmos, as crianças e os poetas, que gostam de jogar dados e de brincar com as palavras e com as representações do mundo, de imitar o Criador, criando também.

Newton permite-se a si mesmo o que não concede aos outros, como se coubesse ao cientista criar, e a Deus recomendar a leitura de sua obra. Sendo a sua verdade de caráter divino, não poderia haver mais de um ponto de vista sobre a mesma realidade. É, pois, como o Deus cristão, artista criador de uma obra só, única, total e acabada. Quanto ao mais, é tirar-lhe as conse­quências, que as premissas teriam sido postas de uma vez por todas. Da mesma forma que a Bíblia, a ciência das inferências é revelação.

Quanto à sua exigência de perfeição, que proíbe ao atirador errar o alvo, não se pode dizer que a genialidade de Newton tenha sido inovadora, por mais que tenha inovado. O modelo de sua ciência pode ter sido colhido em outra parte, quem sabe na pretensão racionalista de secularizar o dogma cristão ou na metafísica platônica, que tem a sua chave de abóbada no ­firmamento de suas Ideias fixas, onde os projéteis não se extraviam e os axiomas não se definem pelo contexto humano, em mudança. A moral do Bem e do Mal, em cuja busca o filósofo Platão, com vistas ao domínio sobre a Cidade, empenhou a sua carreira, procede de maneira idêntica: promove a organização simétrica de uma ordem abstrata, que identifica com a própria realidade. Da mesma forma, a religião dogmática viria a promover com a Inquisição a organização do terror.

Um tal paralelo, ao confundir deliberadamente os papéis de Newton e Molière, convida ao reconhecimento de que a unidade da realidade, ou do ser humano, é indivisível

É o que nos fizeram enxergar também as bruxas, ao demonstrarem, com o descrédito lançado sobre a Inquisição, que é impossível refrear a realidade em mudança, separando o bem do mal, retirando-os do contexto. Com elas, aprendemos que o contexto é a exibição dessa opereta — recriada na literatura por Machado de Assis, que nos fala do conluio entre Deus e o Diabo —, cujo libreto teria sido escrito em dueto a quatro mãos. Pois uma ordenação divina que não pudesse ser desorde­nada pelo Diabo faria Deus bocejar de aborrecimento por toda a eterni­dade, atitude indigna do criador da criatividade. Estaria talvez aí a explicação por que em Homero, que não era monoteísta, a deusa Atena não ­ordena, mas limita-se a sugerir, de maneira cortês e cavalheiresca. Res­peita assim em Aquiles a capacidade humana de reformar a própria decisão



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