segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Da passagem do tempo: do escorrer da areia na ampulheta aos saltos dos ponteiros do relógio

 Da passagem do tempo: do escorrer da areia na ampulheta aos saltos dos ponteiros do relógio

Nivaldo T. Mazano 

Toda inovação - ou toda mudança, de modo geral - é percebida no espaço perceptivo unitário capaz de compreender ao mesmo tempo o seu lado novo, ou estranho, e o seu lado antigo, ou familiar. Não existe a possibilidade de se reconhecer algo que seja absolutamente estranho, uma vez que a percepção é diferencial: O novo somente é percebido como novo sobre o pano de fundo do que não é novo; do contrário, não se saberia dizer se é novo. A diferença caracteriza tanto o novo em relação ao velho, quanto o velho em relação ao novo. Assim, por exemplo, para se fazer aceitar pelo mundo pagão como nova religião, o cristianismo teve de apresentar-se - no seu ritual, na sua liturgia e nos objetos de seu culto - revestido de símbolos, gestos e representações do paganismo, para que os pagãos pudessem reconhecê-lo primeiro como religião e depois como nova religião.

Isso significa assumir que a percepção, para se dar conta de que reconheceu algo de novo, precisa incidir sobre um espaço virtual de possibilidades que se caracteriza pela continuidade e pela descontinuidade, ao mesmo tempo. Pela continuidade, no sentido de que o novo que se enxerga não é tão novo assim, ao se destacar do fundo comum no qual se encontra também o velho, do qual emerge como novo; pela descontinuidade, no sentido de que o novo não se confunde com o velho, embora seja no espaço ocupado pelo velho que se reconhece a emergência do novo.

Essa é uma experiência intuitiva. Assim, por exemplo, o pinto, que é novo, sai do velho, que é o ovo, e entre o ovo e o pinto reconhecem-se, ao mesmo tempo, uma continuidade e uma descontinuidade. A borboleta, que é o novo, sai de suas fases larvais, que são velhas, e estas saem da borboleta, que se torna velha quando chega a hora do ovo e da nova larva. Não é possível reconhecer a metamorfose senão mediante a união conflitante e concorrente entre a continuidade e a descontinuidade, em interação num mesmo espaço unitário de possibilidades. Separar uma da outra é mortal, tanto para a borboleta quanto para a larva, quanto para o ovo, quanto para o pinto, quanto para a existência humana, que consiste em explorar, na variação da descontinuidade de seus possíveis modos de existir, novas formas de continuidade.

                            

Um cartaz de propaganda fixado nos antigos bondes da cidade de São Paulo dizia: “Veja, ilustre passageiro, que belo tipo faceiro o senhor tem ao seu lado; e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite: salvou-o o Rum Creosotado”: descontinuidade na continuidade. Diz-se que um sapo, se colocado numa panela de água fria posta a ferver, morreria na fervura por não se dar conta em tempo da diferença entre a continuidade do aquecimento e a descontinuidade da ebulição. Observe que a dimensão feminina da existência se prende à continuidade, enquanto a dimensão masculina, à descontinuidade. À dimensão feminina agrada mais sentir a passagem do tempo no escorrer da areia numa ampulheta; a dimensão masculina, nos saltos descontínuos dos ponteiros do relógio. A continuidade expressa-se no analógico; a descontinuidade, no digital. Da junção num mesmo espaço unitário entre o feminino e o masculino, ou entre o analógico e o digital, ou entre a continuidade e a descontinuidade – operação ilógica, porém real -, tem-se um contexto, ou seja, uma realidade unitária, aberta para todos os possíveis. Ambos os polos tanto se opõem um ao outro quanto colaboram um com outro, na sua unidade feita de opostos em conflito e em colaboração. Isso é a realidade percebida, ou o contexto. Isso é a existência em ambas as dimensões – feminina e masculina, solidárias na sua oposição. (Pior para a lógica).

Pode dizer-se que reconhecer a presença simultânea da continuidade e da descontinuidade no espaço unitário em que incide a percepção da realidade é o maior, senão único, desafio e, formalmente, a razão de ser do estímulo que leva o ser humano a amar, trabalhar, fazer arte, filosofia ou ciência. Esse é também o único problema, que está na origem de todos os demais.

 

Da passagem do tempo: do escorrer da areia na ampulheta aos saltos dos ponteiros do relógio

Toda inovação - ou toda mudança, de modo geral - é percebida no espaço perceptivo unitário capaz de compreender ao mesmo tempo o seu lado novo, ou estranho, e o seu lado antigo, ou familiar. Não existe a possibilidade de se reconhecer algo que seja absolutamente estranho, uma vez que a percepção é diferencial: O novo somente é percebido como novo sobre o pano de fundo do que não é novo; do contrário, não se saberia dizer se é novo. A diferença caracteriza tanto o novo em relação ao velho, quanto o velho em relação ao novo. Assim, por exemplo, para se fazer aceitar pelo mundo pagão como nova religião, o cristianismo teve de apresentar-se - no seu ritual, na sua liturgia e nos objetos de seu culto - revestido de símbolos, gestos e representações do paganismo, para que os pagãos pudessem reconhecê-lo primeiro como religião e depois como nova religião.

Isso significa assumir que a percepção, para se dar conta de que reconheceu algo de novo, precisa incidir sobre um espaço virtual unitário de possibilidades que se caracteriza pela continuidade e pela descontinuidade, ao mesmo tempo. Pela continuidade, no sentido de que o novo que se enxerga não é tão novo assim, ao se destacar do fundo comum no qual se encontra também o velho, do qual emerge como novo; pela descontinuidade, no sentido de que o novo não se confunde com o velho, embora seja no espaço ocupado pelo velho que se reconhece a emergência do novo.

Essa é uma experiência intuitiva. Assim, por exemplo, o pinto, que é novo, sai do velho, que é o ovo, e entre o ovo e o pinto reconhecem-se, ao mesmo tempo, uma continuidade e uma descontinuidade. A borboleta, que é o novo, sai de suas fases larvais, que são velhas, e estas saem da borboleta, que se torna velha quando chega a hora do ovo e da nova larva. Não é possível reconhecer a metamorfose senão mediante a união conflitante e concorrente entre a continuidade e a descontinuidade, em interação num mesmo espaço unitário de possibilidades. Separar uma da outra é mortal, tanto para a borboleta quanto para a larva, quanto para o ovo, quanto para o pinto, quanto para a existência humana, que consiste em explorar, na variação da descontinuidade de seus possíveis modos de existir, novas formas de continuidade.

Um cartaz de propaganda fixado nos antigos bondes da cidade de São Paulo dizia: “Veja, ilustre passageiro, que belo tipo faceiro o senhor tem ao seu lado; e, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite: salvou-o o Rum Creosotado”. Diz-se que um sapo, se colocado numa panela de água fria posta a ferver, morreria na fervura por não se dar conta em tempo da diferença entre a continuidade do aquecimento e a descontinuidade da ebulição. Observe que a dimensão feminina da existência se prende à continuidade, enquanto a dimensão masculina, à descontinuidade. À dimensão feminina agrada mais sentir a passagem do tempo no escorrer da areia numa ampulheta; a dimensão masculina, nos saltos descontínuos dos ponteiros do relógio. A continuidade expressa-se no analógico; a descontinuidade, no digital. Da junção num mesmo espaço unitário entre o feminino e o masculino, ou entre o analógico e o digital, ou entre a continuidade e a descontinuidade – operação ilógica, porém real -, tem-se um contexto, ou seja, uma realidade unitária, aberta para todos os possíveis. Ambos os polos tanto se opõem um ao outro quanto colaboram um com outro, na sua unidade feita de opostos em conflito e em colaboração. Isso é a realidade percebida, ou o contexto. Isso é a existência em ambas as dimensões – feminina e masculina, solidárias na sua oposição. (Pior para a lógica).

Pode dizer-se que reconhecer a presença simultânea da continuidade e da descontinuidade no espaço unitário em que incide a percepção da realidade é o maior, senão único, desafio e a razão de ser do estímulo que leva o ser humano a amar, fazer arte, filosofia ou ciência. Esse é também, formalmente, o único problema, que está na origem de todos os da sociedade política.

         

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