Da passagem do tempo: do escorrer da areia na ampulheta aos saltos dos ponteiros do relógio
Nivaldo T. Mazano
Toda
inovação - ou toda mudança, de modo geral - é percebida no espaço perceptivo
unitário capaz de compreender ao mesmo tempo o seu lado novo, ou estranho, e o
seu lado antigo, ou familiar. Não existe a possibilidade de se reconhecer algo
que seja absolutamente estranho, uma vez que a percepção é diferencial: O novo
somente é percebido como novo sobre o pano de fundo do que não é novo; do
contrário, não se saberia dizer se é novo. A diferença caracteriza tanto o novo
em relação ao velho, quanto o velho em relação ao novo. Assim, por exemplo,
para se fazer aceitar pelo mundo pagão como nova religião, o cristianismo teve
de apresentar-se - no seu ritual, na sua liturgia e nos objetos de seu culto -
revestido de símbolos, gestos e representações do paganismo, para que os pagãos
pudessem reconhecê-lo primeiro como religião e depois como nova religião.
Isso
significa assumir que a percepção, para se dar conta de que reconheceu algo de
novo, precisa incidir sobre um espaço virtual de possibilidades que se
caracteriza pela continuidade e pela descontinuidade, ao mesmo tempo. Pela
continuidade, no sentido de que o novo que se enxerga não é tão novo assim, ao
se destacar do fundo comum no qual se encontra também o velho, do qual emerge
como novo; pela descontinuidade, no sentido de que o novo não se confunde com o
velho, embora seja no espaço ocupado pelo velho que se reconhece a emergência
do novo.
Essa é
uma experiência intuitiva. Assim, por exemplo, o pinto, que é novo, sai do
velho, que é o ovo, e entre o ovo e o pinto reconhecem-se, ao mesmo tempo, uma
continuidade e uma descontinuidade. A borboleta, que é o novo, sai de suas
fases larvais, que são velhas, e estas saem da borboleta, que se torna velha
quando chega a hora do ovo e da nova larva. Não é possível reconhecer a
metamorfose senão mediante a união conflitante e concorrente entre a
continuidade e a descontinuidade, em interação num mesmo espaço unitário de
possibilidades. Separar uma da outra é mortal, tanto para a borboleta quanto para
a larva, quanto para o ovo, quanto para o pinto, quanto para a existência
humana, que consiste em explorar, na variação da descontinuidade de seus
possíveis modos de existir, novas formas de continuidade.
Um cartaz
de propaganda fixado nos antigos bondes da cidade de São Paulo dizia: “Veja,
ilustre passageiro, que belo tipo faceiro o senhor tem ao seu lado; e, no
entanto, acredite, quase morreu de bronquite: salvou-o o Rum Creosotado”:
descontinuidade na continuidade. Diz-se que um sapo, se colocado numa panela de
água fria posta a ferver, morreria na fervura por não se dar conta em tempo da
diferença entre a continuidade do aquecimento e a descontinuidade da ebulição.
Observe que a dimensão feminina da existência se prende à continuidade,
enquanto a dimensão masculina, à descontinuidade. À dimensão feminina agrada
mais sentir a passagem do tempo no escorrer da areia numa ampulheta; a dimensão
masculina, nos saltos descontínuos dos ponteiros do relógio. A continuidade
expressa-se no analógico; a descontinuidade, no digital. Da junção num mesmo
espaço unitário entre o feminino e o masculino, ou entre o analógico e o
digital, ou entre a continuidade e a descontinuidade – operação ilógica, porém
real -, tem-se um contexto, ou seja, uma realidade unitária, aberta para todos
os possíveis. Ambos os polos tanto se opõem um ao outro quanto colaboram um com
outro, na sua unidade feita de opostos em conflito e em colaboração. Isso é a
realidade percebida, ou o contexto. Isso é a existência em ambas as dimensões –
feminina e masculina, solidárias na sua oposição. (Pior para a lógica).
Pode
dizer-se que reconhecer a presença simultânea da continuidade e da
descontinuidade no espaço unitário em que incide a percepção da realidade é o
maior, senão único, desafio e, formalmente, a razão de ser do estímulo que leva
o ser humano a amar, trabalhar, fazer arte, filosofia ou ciência. Esse é também
o único problema, que está na origem de todos os demais.
Da
passagem do tempo: do escorrer da areia na ampulheta aos saltos dos ponteiros
do relógio
Toda
inovação - ou toda mudança, de modo geral - é percebida no espaço perceptivo
unitário capaz de compreender ao mesmo tempo o seu lado novo, ou estranho, e o
seu lado antigo, ou familiar. Não existe a possibilidade de se reconhecer algo
que seja absolutamente estranho, uma vez que a percepção é diferencial: O novo
somente é percebido como novo sobre o pano de fundo do que não é novo; do
contrário, não se saberia dizer se é novo. A diferença caracteriza tanto o novo
em relação ao velho, quanto o velho em relação ao novo. Assim, por exemplo,
para se fazer aceitar pelo mundo pagão como nova religião, o cristianismo teve
de apresentar-se - no seu ritual, na sua liturgia e nos objetos de seu culto -
revestido de símbolos, gestos e representações do paganismo, para que os pagãos
pudessem reconhecê-lo primeiro como religião e depois como nova religião.
Isso
significa assumir que a percepção, para se dar conta de que reconheceu algo de
novo, precisa incidir sobre um espaço virtual unitário de possibilidades que se
caracteriza pela continuidade e pela descontinuidade, ao mesmo tempo. Pela
continuidade, no sentido de que o novo que se enxerga não é tão novo assim, ao
se destacar do fundo comum no qual se encontra também o velho, do qual emerge como
novo; pela descontinuidade, no sentido de que o novo não se confunde com o
velho, embora seja no espaço ocupado pelo velho que se reconhece a emergência
do novo.
Essa é
uma experiência intuitiva. Assim, por exemplo, o pinto, que é novo, sai do
velho, que é o ovo, e entre o ovo e o pinto reconhecem-se, ao mesmo tempo, uma
continuidade e uma descontinuidade. A borboleta, que é o novo, sai de suas
fases larvais, que são velhas, e estas saem da borboleta, que se torna velha
quando chega a hora do ovo e da nova larva. Não é possível reconhecer a
metamorfose senão mediante a união conflitante e concorrente entre a
continuidade e a descontinuidade, em interação num mesmo espaço unitário de
possibilidades. Separar uma da outra é mortal, tanto para a borboleta quanto
para a larva, quanto para o ovo, quanto para o pinto, quanto para a existência
humana, que consiste em explorar, na variação da descontinuidade de seus
possíveis modos de existir, novas formas de continuidade.
Um cartaz
de propaganda fixado nos antigos bondes da cidade de São Paulo dizia: “Veja,
ilustre passageiro, que belo tipo faceiro o senhor tem ao seu lado; e, no
entanto, acredite, quase morreu de bronquite: salvou-o o Rum Creosotado”.
Diz-se que um sapo, se colocado numa panela de água fria posta a ferver,
morreria na fervura por não se dar conta em tempo da diferença entre a
continuidade do aquecimento e a descontinuidade da ebulição. Observe que a
dimensão feminina da existência se prende à continuidade, enquanto a dimensão
masculina, à descontinuidade. À dimensão feminina agrada mais sentir a passagem
do tempo no escorrer da areia numa ampulheta; a dimensão masculina, nos saltos
descontínuos dos ponteiros do relógio. A continuidade expressa-se no analógico;
a descontinuidade, no digital. Da junção num mesmo espaço unitário entre o
feminino e o masculino, ou entre o analógico e o digital, ou entre a
continuidade e a descontinuidade – operação ilógica, porém real -, tem-se um
contexto, ou seja, uma realidade unitária, aberta para todos os possíveis.
Ambos os polos tanto se opõem um ao outro quanto colaboram um com outro, na sua
unidade feita de opostos em conflito e em colaboração. Isso é a realidade
percebida, ou o contexto. Isso é a existência em ambas as dimensões – feminina
e masculina, solidárias na sua oposição. (Pior para a lógica).
Pode dizer-se que reconhecer a
presença simultânea da continuidade e da descontinuidade no espaço unitário em
que incide a percepção da realidade é o maior, senão único, desafio e a razão
de ser do estímulo que leva o ser humano a amar, fazer arte, filosofia ou
ciência. Esse é também, formalmente, o único problema, que está na origem de
todos os da sociedade política.
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