Carta a meu filho
Nivaldo T. Manzano
Meu
filho,
Você
pede-me que o oriente, e também a seus amigos, na seleção de alguns livros que
exacerbem ainda mais em vocês os comichões libertários. Sinto-me gratificado
pela confiança que deposita em mim, sabendo que uma diferença de geração de
trinta e cinco anos nos separa um do outro. De fato, é muito tempo, e também
pouco ou talvez nenhum. Se sentimos a existência, não como um caminho já aberto
a percorrer, mas como um modo de viajar, ou de se estar no mundo seduzido pelo
desejo de se comprazer nele, então a distância que nos separa é também a que
nos aproxima.
Todos os
que se deixam levar nessa aventura compartilham o sentimento comum de estar
sendo conduzidos pelos encantos da paisagem e das sensações novas que
experimentam, ao mesmo tempo que o realizam cada um a seu modo — de modo
singular. Entre os encantamentos da existência está o mistério de, sendo a
experiência pessoal intransferível, nos compreendermos uns aos outros. Não é
possível a você, e a ninguém, colocar-se em meu lugar para senti-la da maneira
como eu a sinto — ainda assim, quando conversamos sobre o que experimentamos,
estamos seguros de que não nos enganamos sobre o que estamos sentindo.
Isso
leva-me a evocar a ideia intuitiva de que a existência, em razão de estar
embebida na comunicação, transcorre, não segundo o princípio da identidade (A =
A), mas segundo o princípio da equivalência. Somos iguais e diferentes, a um só
tempo. Iguais, porque nos reconhecemos um no outro; diferentes, porque sabemos
que um não é o outro: é na presença, ou na evocação, de outrem que cada um se
reconhece a si mesmo. Entre mim e outrem existe, pois, uma continuidade e uma
descontinuidade, dimensões ao mesmo tempo conflitantes na sua inconsistência e
solidárias na diversidade que as une, sem que se possa torná-las idênticas.
Ambas as dimensões coexistem também em cada um de nós.
O fato de
eu ser pai e você filho tanto nos separa quanto nos aproxima. Além de filho,
você é aluno, colega, amigo, vizinho, primo, neto, compositor... — papéis
distintos que não se confundem entre si e que, no entanto, são desempenhados
por uma pessoa que é a mesma enquanto muda, na variação no modo
de desempenhá-los. Tivéssemos ambos os olhos bem abertos para a realidade,
veríamos, a cada vez que nos encontramos, que você não é o mesmo filho nem eu o
mesmo pai, tratando-se, no entanto, do mesmo filho e do mesmo pai.
Cada vez
que executa a mesma música na guitarra, você sente — e também quem o ouve — que
o faz de modo diferente. Dois gestos não se repetem. Perceber a diferença é
estar atento à mudança — e a mudança é o estado em que cada um de nós se
encontra, a cada momento, na existência. Estamos em mudança: você já não é o
que era e ainda não é o que será. Essa sensação de unidade na diversidade dos
modos de ser — ou, melhor, de estar — desperta em nós o sentimento e fortalece
a convicção de que tudo é revogável e de que nada é definitivo. Somos seres de
mudança; no plano da sociedade, seres de mudança de caráter cultural. Algo
semelhante ocorre também às plantas e aos animais. Eles também praticam a
equivalência, a diversidade na unidade: na ausência do calor das cinzas do
fogão a lenha, o gato converte a caixa de metal do modem da TV a cabo no seu
borralho. À maneira do poeta com as suas analogias e metáforas, nosso gato
“Gatozé” também escande a sua vida no modo da equivalência, assim como procedem
as plantas, que retiram do solo os minerais de que precisam para o seu
desenvolvimento; no caso de solos empobrecidos, reconhecem a equivalência
mineral em derivados do petróleo, ou fertilizantes químicos, como o nitrogênio.
É graças
também ao pressentimento da equivalência que fruímos, com prazer no
estranhamento, as diferenças culturais entre povos, etnias ou civilizações. No
estudo da história, comprazemo-nos na ambiguidade entre o prazer de estar lá,
para onde ela nos transporta, e o de estarmos cá, onde ela já não nos alcança.
Gostamos de viajar desde que possamos retornar à casa. Gostamos de desempenhar
um papel desde que nos sintamos livres para poder desempenhar um outro.
Entregamo-nos, no cinema e na leitura, a viagens interplanetárias, seguros de
poder retornar ao nosso mundo.
De onde
vem a ambiguidade desse prazer que é também receio? – pergunta-se o filósofo
George Santayana. E responde: De provar novas experiências sem abrir mão das
antigas. Desejo viver tudo a um só tempo e desejo viver sempre mais tudo.
Assim, instalamos a existência no modo do gozo exponencial: um novo modo de
enxergar a realidade leva-nos não somente a divisar novos mundos, mas também a sentir
diversamente — de modo novo — o mundo que sentíamos, para dele fruir novamente.
Queremos a um só tempo a permanência e a mudança — o que foi e o que será. Sem
deixar de ser passado, o passado retorna para revelar-se em alguma de suas
dobras, até então não reconhecidas, e testemunhar a autenticidade do novo sabor
do presente. Para isso servem as pálpebras, ou a noite: protegidos por elas,
fazemos descansar no recolhimento a nossa visão de mundo, para sermos
despertados por uma outra, que instiga em nós outra vez o desejo de nos
comprazermos na existência, diferentemente.
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