segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A ilusão da fuga no olhar do próprio umbigo

A ilusão da fuga no olhar do próprio umbigo

 Nivaldo T. Manzano

Como compreender a apatia social das classes médias frente às barbaridades praticadas pelo bando de milicianos no Poder? Não tenho resposta cabal para a indagação. Limito-me a registrar um aspecto apenas dessa realidade, que é o contraste paradoxal entre a apatia e o entusiasmo pelo coaching e as demais artes da reclusão majestática do ego na sociedade brasileira.

O coaching insere-se num universo ideológico mais amplo – o da subjetivação do comportamento social, como estratégia individual defensiva, em resposta a uma situação generalizada de profundo desconforto difuso, que perpassa toda a sociedade. Na mesma constelação semântica observou-se, nos últimos anos, uma expansão vertiginosa das academias de modelagem corporal e da venda de livros de autoajuda, associados a uma miríade de negócios para-religiosos de técnicas corporais e espirituais, ritos e dietas que acenam para uma existência menos desconfortável.

O coaching traz-me a ideia de que a vítima já não suporta a si mesma, motivo por que procura um estranho – especialista – supostamente capaz de fazê-la reerguer-se da prostração e devolver-lhe a sensação de caminhar sobre os próprios pés. Em que momento de sua vida isso ocorre? Quando o mau cheiro moral aspirado da "sociedade de mercado" acaba sendo expirado por suas próprias narinas. Ou quando o esvaziamento de sua vida interior se torna insuportável como resultado paradoxal do "fortalecimento" do ego pela propaganda, mediante a sua despersonalização serial.

Formalmente, o coaching define-se como “um processo de desenvolvimento que envolve orientação e modificação de comportamentos com o objetivo de ampliar os resultados que a pessoa atinge em dimensões específicas da vida e gerar autonomia, entendida como a capacidade de se autoavaliar; avaliar o seu contexto e tomar a decisão sobre os caminhos a percorrer para alterar tanto o seu comportamento quanto o contexto no qual ele ocorre” (Felipe Dias, psicólogo, MBA em pessoas pela FGV e mestre em Psicologia).

Como é sabido, trata-se de um mercado florescente e próspero, que compreende uma ampla gama de especialidades e ganha a dimensão de torcidas de futebol, segundo afirma Dias: “ O padrão é uma imagem com muitas pessoas em um auditório com um pastor, ou melhor, um instrutor engravatado lá na frente. Geralmente o instrutor conta cases de sucesso, como se fossem testemunhos de que sua técnica é eficaz e trabalha na fragilidade das pessoas, mostrando a elas que podem ser diferentes. A estrutura do discurso é religiosa. ‘Você está nessa situação agora e pode ir para uma situação muito melhor basta seguir os ensinamentos de Fulano’. Obviamente, a pessoa se identifica com o discurso: ‘É disso que estou precisando!’”

E para atender aos que “estão precisando”, acorrem, em meio à acirrada concorrência, as modalidades hierárquicas do genérico “personal coaching”, tais como “executive coaching”, depois o “business coaching”, “power coaching”, “extreme coaching”, “master ultra power leader coaching”. Assim como se passa nas pirâmides financeiras, no topo está o espertalhão, que é o coach do coach dos coachs. Na verdade, há sempre o que aprender sobre si mesmo, não é? Tanto mais que no adestramento o aprendiz é rendido à evidência de que “não estou pronto ainda”.

Muitos são os sociólogos e psicólogos que estudam o caráter mórbido do problema, que reconduz a vítima ao enfeudamento do ego, quem diria!, o self made man, o meritocrata que acredita em crescer puxando para cima os próprios cabelos, o libertário da vertente neoliberal! Dirijo, pois, as observações para uma outra direção. Refiro-me ao fato de que não é nova na história cultural do Ocidente a subjetivação massal do comportamento; a reclusão para dentro de si mesmo, como resposta à insegurança e dúvida quanto à própria capacidade de fazer frente ao desafio na arena de Circo Romano em que foi convertida a vida na “sociedade de mercado”.

Assim, por exemplo, como resultado da decadência da civilização e da cultura greco-romana, que se seguiu à morte em 322 A.C. de Alexandre o Grande, a reflexão dos sábios recuou da praça – onde debatiam filósofos, políticos e charlatães - para dentro de casa e lá se enfeudou nos séculos seguintes. A atmosfera intelectual de então sugere que a crise econômica e social, provocada pela decadência interna, associada a invasões e guerras, desestruturou os estratos em que se organizara a sociedade, levando à insegurança política e social generalizada. O especialista diria que “esse é o momento na história cultural em que a consciência individual e o Estado, ou o ideal e o real, começam a se separar por um abismo” (Max Horkheimer* - 1895 - 1973). Nesse contexto, a reflexão sobre a existência pende para uma busca individual de consolo, mediante exercícios profiláticos, que conduzam a harmonias interiores, ao abrigo do infortúnio, à fuga do sofrimento. Tem-se, então, a dissociação entre o indivíduo e a comunidade – convertida esta em palavra vazia.

Na tentativa de rejeitar o repulsivo, joga-se fora a criança com a água suja do banho: Renuncia-se à prerrogativa de enxergar a realidade no seu todo, submetendo-se, por implicação, à tirania. “À medida em que se retira da participação dos assuntos políticos, o ser humano tende a regredir à lei da selva, que esmaga todos os vestígios da individualidade”, observa Horkheimer.

Ou seja, no empenho equivocado em evitar de cair no buraco, o sujeito se lança de corpo inteiro para dentro dele.

*Horkheimer, M., Eclipse da razão, São Paulo, Centauro, 2003. 

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