A ilusão
da fuga no olhar do próprio umbigo
Nivaldo T. Manzano
Como
compreender a apatia social das classes médias frente às barbaridades
praticadas pelo bando de milicianos no Poder? Não tenho resposta cabal para a
indagação. Limito-me a registrar um aspecto apenas dessa realidade, que é o
contraste paradoxal entre a apatia e o entusiasmo pelo coaching e as demais
artes da reclusão majestática do ego na sociedade brasileira.
O
coaching insere-se num universo ideológico mais amplo – o da subjetivação do
comportamento social, como estratégia individual defensiva, em resposta a uma
situação generalizada de profundo desconforto difuso, que perpassa toda a
sociedade. Na mesma constelação semântica observou-se, nos últimos anos, uma
expansão vertiginosa das academias de modelagem corporal e da venda de livros
de autoajuda, associados a uma miríade de negócios para-religiosos de técnicas
corporais e espirituais, ritos e dietas que acenam para uma existência menos
desconfortável.
O
coaching traz-me a ideia de que a vítima já não suporta a si mesma, motivo por
que procura um estranho – especialista – supostamente capaz de fazê-la reerguer-se
da prostração e devolver-lhe a sensação de caminhar sobre os próprios pés. Em
que momento de sua vida isso ocorre? Quando o mau cheiro moral aspirado da
"sociedade de mercado" acaba sendo expirado por suas próprias
narinas. Ou quando o esvaziamento de sua vida interior se torna insuportável
como resultado paradoxal do "fortalecimento" do ego pela propaganda,
mediante a sua despersonalização serial.
Formalmente,
o coaching define-se como “um processo de desenvolvimento que envolve
orientação e modificação de comportamentos com o objetivo de ampliar os
resultados que a pessoa atinge em dimensões específicas da vida e gerar
autonomia, entendida como a capacidade de se autoavaliar; avaliar o seu
contexto e tomar a decisão sobre os caminhos a percorrer para alterar tanto o
seu comportamento quanto o contexto no qual ele ocorre” (Felipe Dias,
psicólogo, MBA em pessoas pela FGV e mestre em Psicologia).
Como é
sabido, trata-se de um mercado florescente e próspero, que compreende uma ampla
gama de especialidades e ganha a dimensão de torcidas de futebol, segundo
afirma Dias: “ O padrão é uma imagem com muitas pessoas em um auditório com um
pastor, ou melhor, um instrutor engravatado lá na frente. Geralmente o
instrutor conta cases de sucesso, como se fossem testemunhos de que sua técnica
é eficaz e trabalha na fragilidade das pessoas, mostrando a elas que podem ser
diferentes. A estrutura do discurso é religiosa. ‘Você está nessa situação
agora e pode ir para uma situação muito melhor basta seguir os ensinamentos de
Fulano’. Obviamente, a pessoa se identifica com o discurso: ‘É disso que estou
precisando!’”
E para
atender aos que “estão precisando”, acorrem, em meio à acirrada concorrência,
as modalidades hierárquicas do genérico “personal coaching”, tais como “executive
coaching”, depois o “business coaching”, “power coaching”, “extreme coaching”,
“master ultra power leader coaching”. Assim como se passa nas pirâmides
financeiras, no topo está o espertalhão, que é o coach do coach dos coachs. Na
verdade, há sempre o que aprender sobre si mesmo, não é? Tanto mais que no
adestramento o aprendiz é rendido à evidência de que “não estou pronto ainda”.
Muitos
são os sociólogos e psicólogos que estudam o caráter mórbido do problema, que
reconduz a vítima ao enfeudamento do ego, quem diria!, o self made man, o
meritocrata que acredita em crescer puxando para cima os próprios cabelos, o
libertário da vertente neoliberal! Dirijo, pois, as observações para uma outra
direção. Refiro-me ao fato de que não é nova na história cultural do Ocidente a
subjetivação massal do comportamento; a reclusão para dentro de si mesmo, como
resposta à insegurança e dúvida quanto à própria capacidade de fazer frente ao
desafio na arena de Circo Romano em que foi convertida a vida na “sociedade de
mercado”.
Assim,
por exemplo, como resultado da decadência da civilização e da cultura
greco-romana, que se seguiu à morte em 322 A.C. de Alexandre o Grande, a
reflexão dos sábios recuou da praça – onde debatiam filósofos, políticos e
charlatães - para dentro de casa e lá se enfeudou nos séculos seguintes. A
atmosfera intelectual de então sugere que a crise econômica e social, provocada
pela decadência interna, associada a invasões e guerras, desestruturou os
estratos em que se organizara a sociedade, levando à insegurança política e
social generalizada. O especialista diria que “esse é o momento na história
cultural em que a consciência individual e o Estado, ou o ideal e o real,
começam a se separar por um abismo” (Max Horkheimer* - 1895 - 1973). Nesse contexto,
a reflexão sobre a existência pende para uma busca individual de consolo,
mediante exercícios profiláticos, que conduzam a harmonias interiores, ao
abrigo do infortúnio, à fuga do sofrimento. Tem-se, então, a dissociação entre
o indivíduo e a comunidade – convertida esta em palavra vazia.
Na
tentativa de rejeitar o repulsivo, joga-se fora a criança com a água suja do
banho: Renuncia-se à prerrogativa de enxergar a realidade no seu todo,
submetendo-se, por implicação, à tirania. “À medida em que se retira da
participação dos assuntos políticos, o ser humano tende a regredir à lei da
selva, que esmaga todos os vestígios da individualidade”, observa Horkheimer.
Ou seja,
no empenho equivocado em evitar de cair no buraco, o sujeito se lança de corpo
inteiro para dentro dele.
*Horkheimer, M., Eclipse da razão, São Paulo, Centauro, 2003.
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